domingo, 4 de setembro de 2016

AQUARIUS: menos política, mais nostalgia


Por Carlos Larios

Começa a sessão. Subitamente a tela é tomada por uma antiga foto da Praia de Boa Viagem, em Recife. A voz cortante do já esquecido (e genial) Taiguara reverbera na sala. "Hoje. Trago em meu corpo as marcas do meu tempo". Esse trecho já sintetiza todo o contexto de AQUARIUS, nova obra de Kleber Mendonça Filho.

Desde sua tempestuosa estreia em Cannes, quando elenco e diretor manifestaram posição contrária ao impeachment, até a data de lançamento no começo de setembro, AQUARIUS se tornou um símbolo cultural de resistência contra o atual governo vigente no Brasil.

Detratores enfurecidos prometeram boicotar o filme. Já entusiastas apaixonadas declararam total apoio à obra de KMF. A questão é que o contorno político de AQUARIUS tirou o verdadeiro enfoque do filme: a arte para ser contemplada, independentemente de ideologia ou leis de incentivo fiscal do governo.

Apesar de tocar em velhas feridas da cambaleante sociedade brasileira, pincelando sutilmente temas como disparidades entre classes sociais, sexismo e preconceitos velados, o filme é na sua essência uma obra sobre lembranças e nostalgia.


Os três capítulos que dividem AQUARIUS, contextualizam essa tese sob a ótica da protagonista Clara. A aposentada jornalista musical, escritora e voraz colecionadora de vinis é um daqueles raros casos em que a ficção transcende a película. A personagem vivida por uma sobrenatural Sônia Braga é de um realismo desconcertante.

Entre gestuais intrínsecos de Clara, fica difícil o espectador não torcer por sua personalidade aguerrida e determinada em conquistar seus objetivos. Nesse caso, permanecer no apartamento em que vivenciou, por mais de três décadas, os anos mais felizes de sua vida. Local onde a lembrança é sua companheira mais devota. Onde as grandes conquistas de sua trajetória estão enraizadas em cada aposento. 

Porém, com exceção do apartamento de Clara, o condomínio Aquarius foi completamente adquirido por uma poderosa construtora, que planeja demolir o local para erguer um moderno e imponente edifício. Diego (Humberto Carrão) é o ambicioso executivo da companhia que tenta negociar o imóvel de Clara. Mesmo com uma oferta milionária para ceder seu aconchegante espaço, a protagonista resiste bravamente as investidas da empresa

Nesse embate entre Davi e Golias, quem sai ganhando são os espectadores. É difícil não criar empatia com a personagem, sobretudo depois do primeiro ato, onde o passado da protagonista vem à tona de forma tocante. 



Os diálogos no transcorrer da trama são inspirados, e se alternam entre drama familiar e humor cotidiano. Válido ressaltar o desempenho de todo o elenco que, com muito êxito, entrega caracterizações palpáveis. Em alguns momentos é possível esquecer de que se trata efetivamente de uma ficção. 

A câmera de KMF testemunha os atos de sua personagem, focando a ação no rosto de Sônia Braga. Por todo o filme, salvo raras exceções, Clara se faz presente. Seja em planos abertos, fechados, com zoom, em travelling ou steady cam. O diretor não se restringe a uma forma de filmar. Cada ação da personagem requer um toque especial da câmera, reforçando as ações da musa obstinada. 

A trilha sonora também é uma atração a parte. As canções entoadas durante a metragem de AQUARIUS foram escolhidas com muito esmero, já que reforçam algumas passagens da película. Em determinado momento, Clara se aborrece com a música entoada bem acima de seu apartamento. Sem hesitação, a personagem se desloca decisivamente para sua coleção de vinis, e retira uma cópia de JAZZ, um dos álbuns mais notórios do Queen. 

Com muita elegância, a personagem sumariamente retira o disco e o põe para tocá-lo na vitrola. A partir de então as vozes harmoniosas do quarteto britânico em Fat Bottomed Girls, sobrepõem-se ao batidão mambembe do andar superior. Aqui a música é uma personagem necessária para esse filme que é essencialmente melódico. Gilberto Gil, Altemar Dutra, Maria Bethânia, Reginaldo Rossi, Alcione, Boca Livre, Roberto Carlos e o já citado Taiguara complementam a eclética seleção musical de Kleber Mendonça Filho.




AQUARIUS é um filme irretocável e bastante acessível, se comparado com o antecessor O SOM AO REDOR. É divertido, crítico e aterrador em muitos momentos. Um pastiche indistinto da sociedade brasileira. Sobretudo do cenário das grandes metrópoles, onde o cidadão comum é engolido de forma submissa por grandes corporações, sem ter muito o que fazer. Mas independentemente de briga de classes, AQUARIUS é uma obra sobre o que há de mais valioso na vida. A importância da memória e da nostalgia como um combustível vital.

Se for fã de cinema, desvencilhe-se de preconceitos ideológicos, e tenha a experiência de assistir AQUARIUS em alto e bom som. 

NOTA: 9,0




 

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